Dica do livro “a máquina de fazer espanhóis”, de Valter Hugo Mãe (2010), com prefácio de Caetano Veloso

Porto Editora

Divisão Editorial Literária – Porto

Imagem da capa: Cruzeiro Seixas. Do encontro (detalhe), 1958.

Design da capa: Porto Editora

Foto do autor: Lauren Maganete

19ª edição (1ª na Porto Editora): Setembro de 2016.

Como curiosidade, o índice está mal a partir do capítulo dois, indicando páginas equivocadas.

No prefácio para a 19ª edição, Caetano Veloso louva o peculiar estilo de Mãe, sem maiúsculas, e confessa que ele também escreve assim; embora não seja o caso no prefácio. Depois perde-se numa esquisita divagação sobre que os dois únicos brasileiros com o nome francês Michel que acha nos noticiários são o atual presidente e um criminoso; se nessa altura o Caetano estiver zangado com o presidente Michel Temer, não chego a imaginar como se sentiria o pobrezinho com o que viria depois.

O romance está protagonizado por “antónio jorge da silva”. Depois de enviuvar no capítulo um, antónio vai viver a um lar de idosos. Neste lugar o protagonista trata com os outros idosos, recebe as visitas da sua filha e lamenta a ausência do seu filho. É um romance de muitas reflexões e poucas ações. O protagonista rememora a sua vida; especialmente notável é o capítulo sete, “herdar portugal”, no que resume a sua vida no Portugal fascista do Salazar. Também exprime os seus sentimentos, especialmente um rancor sem qualquer limite que sente contra do mundo por ter perdido a sua esposa; e os seus medos em forma de alucinações noturnas, de abutres que debicam o seu corpo, e de médicos que despregam sobre ele uma grande máquina para o converter em espanhol, eis a máquina do título.

Um dos temas principais do livro aparece já no capítulo um, dissolvido em duas frases: “somos bons homens”, e “não há inocentes”. O protagonista tem de si a imagem de um homem normal, mas também tem cargo de consciência por não se ter rebelado contra do regime, por ter tido medo da intimidadora presença da PIDE, por ter colaborado. A ideia que se transmite é que baixo dum regime totalitário todos viram cúmplices.

O vocabulário do romance é extraordinariamente amplo. A narração é em primeira pessoa e presente, sem maiúsculas, nem aspas ou qualquer signo para distinguir os diálogos, nem pontos de interrogação ou exclamação para distinguir as perguntas e exclamações. O estilo logra produzir a confusão pretendida pelo autor: o leitor não tem certeza de quais frases são descrições da ação, quais são diálogos duma personagem, quais são diálogos de outra, e quais são apenas pensamentos do protagonista. Vemos dois exemplos:

-Página 24: “não há inocentes. o senhor, se não se importa, vai ver como está a minha mulher, já cá entrámos há duas horas e para uma má disposição depois do lanche começa a parecer-me muito tempo. tenha calma, senhor, tenha calma, isto por aqui anda pelas horas de deus.”. Depois de ler estas três fases, viemos a achar que a primeira é provavelmente um pensamento do protagonista, e a segunda e a terceira são um diálogo entre o protagonista e outra personagem.

-Página 30: Um parágrafo mais comprido do que uma página começa com “sentei-me procurando distanciar-me” e finaliza com “já conhecedores do caminho das pedras que, ao fim de uma ou duas horas, nos levaria novamente ao coração um do outro com mimos e promessas de eterno amor.”. Mas no seguinte parágrafo outra personagem dá réplica; revela-se pois que o que o fluxo de pensamentos do primeiro parágrafo vira nalgum ponto indeterminável discurso falado. Se calhar é uma das razões para escolher este estilo literário: transmitir a surpresa de quem se descobre a pensar em alta voz.

Há várias brincadeiras no livro, tomando emprestadas personagens reais e fictícias:

-Nos capítulos cinco e dezassete assomam Jaime Ramos e Isaltino de Jesús, protagonistas habituais dos romances policiais de Francisco José Viegas, já conhecidos de Estudamos português: Dica do romance Um crime na exposição https://estudamosportugues.wordpress.com/2012/12/03/dica-do-romance-um-crime-na-exposicao/ . Nestes capítulos Walter Hugo Mãe recupera as maiúsculas, e imita mesmo o estilo de Viegas.

-Nos capítulos anteriores assoma também uma personagem real e ainda viva nesta altura, o futebolista peruano Teófilo Cubillas, ao que inventa-se-lhe uma relação na sua juventude com uma personagem fictícia, dona Leopoldina.

-Assoma também Fernando Pessoa, personagem real, a coincidir na sua Tabacaria com um Esteves destinado a ser imortalizado no poema “Tabacaria”; neste romance o quase anónimo Esteves toma corpo de personagem fictícia.

Uma questão fundamental nesta obra é a questão da autenticidade. Mãe, de trinta e nove anos na altura, escreve um protagonista de oitenta e quatro anos, mais do duplo. No final do livro, numa nota do autor, desvela que perdeu ao seu pai antes da terceira idade, “por isso decidi inventar uma terceira idade para nós”. Como os atores que dão voz a outros, Mãe dá voz os idosos; a questão não é verdadeiramente se é que é legítimo falar em nome de pessoas com o duplo de idade, senão se o resultado é coerente e credível. E acho que é; Mãe faz um grande trabalho de pôr-se nos sapatos dum idoso.

Conclusão: Uma obra extraordinária na que o autor da voz a um homem no final da sua vida, a refletir sobre o que ele foi e o que ele teve de ser, um juízo sobre a vida inteira.

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